MUNDO
01/06/2020 |
Mostra de Yoko Ono no Porto indica o 'novo normal' da arte pós-Covid
PORTO, Portugual - Yoko Ono tem instruções para o fim da quarentena. Seu “Jardim da Aprendizagem da Liberdade” cultiva uma carreira de 60 anos, mas as obras bem que poderiam ter sido produzidas nestes dias de confinamento. A primeira grande retrospectiva da viúva de John Lennon em Portugal é o marco da reabertura cultural no país. E expõe a adaptação dos museus ao novo mundo pós-pandemia.
É preciso imaginar a expressão concentrada por trás da máscara da curadora do Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, o primeiro a estrear uma grande mostra ao fim da quarentena. Paula Fernandes trabalhava nos ajustes finais enquanto as pessoas chegavam, respeitando o distanciamento de dois metros, anteontem pela manhã. Programada para início de abril, a individual só pôde vir a público nesta terceira fase do desconfinamento gradual em Portugal.
— Tivemos que reaprender a trabalhar e reconstruir o museu, há toda uma lista de recomendações que não existiam antes. Público sempre de máscaras, higienização contínua, distanciamento, luvas... — detalhou Paula, enquanto entregava uma caixa de luvas descartáveis à assistente curitibana Monique Maito.
Carregada de simbolismo e em grande parte interativa, a linha do tempo da exposição não perece em tempos de lives. Inspiração para a individual, “Penal colony” (2001-2004) é uma prisão feita de gelo onde a única esperança possível consiste em esperar que as grades derretam. Diante de “Painting to hammer a nail” (1961), entendemos porque Maito distribuiu luvas descartáveis: Yoko quer pregos no quadro em branco, cravados continuamente com a ajuda de um martelo, que passa de mão em mão.
Fechado em um labirinto de peças de acrílico semelhante aos novos cercadinhos usados em lojas, restaurantes e nas viseiras que se multiplicam mundo afora, “Telephone in maze” (2011) dá outras pistas de como será a arte interativa no pós-Covid. O onipresente álcool em gel é quase parte da obra. Bem na entrada, ele jorra automaticamente, acionado por sensor, e seu uso é obrigatório para quem quer se aventurar a chegar ao centro da instalação e atender o telefone. Pode ser até a própria Yoko Ono do outro lado da linha, que prometeu ligar até 15 novembro, data do encerramento da exposição.
Impossível desassociar as milhares de imagens das vítimas da Covid-19 ao redor do mundo com a centena de caixões rústicos de “EX IT” (1997-2020). As árvores que começam a crescer de cada um deles e o canto dos pássaros que saem do sistema de som entrelaçam vida e morte no questionamento sugerido no roteiro da exposição: quem são estas vítimas anônimas das catástrofes?
Depois de quase uma hora com máscara e em local fechado, a agonia começa a bater. Nestes momentos, museus como Serralves, que têm algumas salas de exposição com grandes janelas, vista para jardins ou parques e amplo espaço externo, serão menos claustrofóbicos na volta ao novo normal. Mesmo assim, o limite de lotação da mostra foi estabelecido em 20 metros quadrados para uma pessoa ou para duas, caso morem juntas.
Última fronteira antes de chegar ao exterior do museu, a pequena sala onde está “Imagine map piece” (2003-2020) tem as paredes revestidas com o mapa de cidades ao redor do globo. Há um carimbo com a frase “Imagine peace” (“imagine paz”) e o público escolhe onde marcar. Após mais uma dose de álcool em gel, o Rio de Janeiro recebeu uma bela carimbada.
Planejada para ser um convite ao encontro da liberdade nos pequenos gestos cotidianos, e ampliada para fora das paredes do museu, com obras que serão espalhadas pelas ruas do Porto, a parte externa da mostra deságua na “Wish tree”, projeto que começou por volta de 1981, um ano após o assassinato de John Lennon. Cada pessoa, com sua caneta trazida de casa a pedido da produção, escreve num papel o seu desejo e o amarra em um galho da árvore posicionada em frente à instalação “Too see the sky” (2015). Naquela manhã nublada de sábado, alguém escreveu vacina, saúde e sol.
Fonte: O Globo