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Artigo da Revista Piauí: No Coração do Bicentenário
Enquanto Portugal está a mil nos preparativos dos 200 anos da Independência, Brasil espera pelo empréstimo do coração de Dom Pedro I
O Palácio das Necessidades, que se ergue altaneiro à margem do Rio Tejo, em Lisboa, foi uma das poucas construções reais a resistir ao arrasador terremoto de 1755. No século seguinte, reformado, foi o escolhido pelo imperador Dom Pedro I para abrigar sua filha, Dona Maria da Glória, depois que ele deixou o Brasil em 1831 e conseguiu finalmente assentá-la no trono de Portugal, em 1834. Para isso, precisou vencer, já doente, uma guerra contra o irmão, Dom Miguel. Foi também nas Necessidades que a rainha brasileira de Portugal, proclamada Maria II, morreu em 1853, aos 34 anos, durante seu 11o parto, no quarto decorado com móveis e objetos trazidos do Paço de São Cristóvão (o incendiado Museu Nacional), no Rio de Janeiro – onde a primogênita de Pedro I nasceu e passou a infância. Nas Necessidades morreriam, em 1861, um atrás do outro, de febre tifoide, três jovens filhos da rainha Maria II, inclusive o então rei Dom Pedro V, aos 24 anos – que ali havia perdido, dois anos antes, a esposa Estefânia, vítima de difteria. Um bocado de infortúnio para o hoje pouco turístico palacete cor-de-rosa cujo nome invoca, desde o século XVIII, a proteção de Nossa Senhora da Saúde (e das Necessidades) contra doenças e pestes.
O conjunto arquitetônico histórico das Necessidades, mix de sobrado barroco, convento, igreja, escola, com miradouros e jardins hoje públicos, seria ainda a última morada da monarquia constitucional portuguesa, nos moldes defendidos por Dom Pedro I, até ser extinta pela República, em 1910. E é nesse local, onde funciona atualmente o Ministério dos Negócios Estrangeiros, que está instalado o ativo comando das comemorações, pelo lado português, do Bicentenário da Independência do Brasil, que também merecerá uma exposição no próprio Palácio das Necessidades.
Deve-se a Dom Pedro, onipresente no casarão onde viveu o ramo mais poderoso de sua descendência lusa, o fato de colonizadores e colonizados ainda festejarem juntos, dois séculos depois, o momento da separação política. Desde que emancipou pacificamente a terra de Vera Cruz, o monarca português, chamado de Pedro IV em Portugal, é quem pontifica no panteão dos homenageados. Na América espanhola e também nos domínios ingleses da América do Norte, a independência ocorreu, nos séculos XVIII e XIX, mediante guerras nacionalistas, banimento da elite imperialista e adoção do regime republicano.
“O processo da independência do Brasil foi um acontecimento único à época, singular, excepcional, e excepcional também é essa comemoração”, avalia o embaixador português Francisco Ribeiro Telles, coordenador do evento desde dezembro. “Penso que não haverá dois países do mundo que festejem esta data como estamos a fazer. Nunca vi os Estados Unidos e o Reino Unido festejarem o Quatro de Julho juntos”, exemplifica. “A festa é obviamente brasileira, mas nós não podíamos ficar no vão da escada; por todas as razões vale a pena comemorar em conjunto”, acrescenta.
Ribeiro Telles já conta com 2 milhões de euros (cerca de 11 milhões de reais) do orçamento do Estado, sem contar as colaborações privadas, para investir numa variada lista de eventos culturais. O convite para Portugal participar do Bicentenário da Independência partiu do governo Temer e foi formalizado em memorando de 4 setembro de 2018 pelo então Ministério da Cultura, hoje extinto. Temer e Fernando Henrique Cardoso são, aliás, os ex-presidentes convidados, ao lado dos seus homólogos portugueses Cavaco Silva e Ramalho Eanes, para o painel de honra que abre o evento considerado por Ribeiro Telles o ponto alto das comemorações do Bicentenário em Lisboa: a conferência sobre o futuro das relações entre os dois países, marcada para os dias 23 e 24 de junho na Fundação Calouste Gulbenkian, referência do circuito intelectual lisboeta.
O embaixador português diz estar trabalhando em estreita colaboração com o Itamaraty. “O chanceler França me disse que instruiu as embaixadas brasileiras no mundo a se associarem às nossas nas comemorações e assim está a ser feito”, relatou Ribeiro Telles. Ele informou que seus interlocutores são os diplomatas brasileiros George Prata e Gonçalo Mourão. O grupo já conversou sobre realizar um seminário, provavelmente na Universidade do Minho, para estudar o fluxo migratório, ao longo dos séculos, entre Portugal e Brasil – hoje um dos principais fornecedores de mão de obra estrangeira para setores da economia portuguesa. Também planejavam apresentar uma “Orquestra dos Mares”, formada por jovens dos dois países, mas a concretização da ideia depende, segundo Ribeiro Telles afirmou à piauí, “dos subsídios pelo lado brasileiro, o que não está fácil”. Ele antecipou que Portugal colocará algum recurso financeiro para “dar o pontapé de saída” no projeto social, que prevê a incorporação, no futuro, de músicos de outros países de língua portuguesa.
Procurado, o Itamaraty afirmou que a embaixada do Brasil em Lisboa tem um orçamento, via Instituto Guimarães Rosa, de 90 mil dólares (cerca de 450 mil reais) para atividades e eventos culturais, em parceria com instituições locais. O ponto alto da programação da embaixada para a Semana do Bicentenário, em setembro, será a turnê portuguesa da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, com quatro concertos em Lisboa, Porto e Coimbra, a participação do Brasil na 92ª Feira do Livro de Lisboa, além do ciclo de leituras cênicas de títulos significativos da dramaturgia brasileira no Teatro Nacional D. Maria II. Não foi informado o orçamento do Ministério das Relações Exteriores para o Sete de Setembro na rede consular e de embaixadas, muito menos o total do Executivo federal para as comemorações do evento no Brasil – a cargo, segundo o Itamaraty, de uma comissão interministerial.
Também não chegaram até agora convites do governo brasileiro para autoridades portuguesas participarem de solenidades oficiais do Sete de Setembro no Brasil. Quem tomou a frente e oficializou o convite, já aceito, para o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, discursar em Brasília, durante sessão solene do Legislativo, no dia 8 de setembro, foi o presidente do Congresso, senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG). “Essa data não pode passar em branco. Embora seja a celebração de algo que tenha sido uma independência ou uma separação, na verdade tem por essência a união de dois povos, de duas nações, que são irmãs”, conciliou Pacheco em recente visita a Coimbra, cuja universidade, tradicional formadora das elites brasileiras desde a Colônia, também participa com uma exposição no Recife sobre o seu papel na Independência do Brasil.
Rebelo estará também na abertura da Bienal Internacional do Livro de São Paulo, em 2 de julho, que faz parte do calendário do Bicentenário e tem Portugal como país homenageado. Outro projeto na seara intelectual é o 200 Anos, 200 livros, que mobiliza vários parceiros dos dois lados do Atlântico, com destaque em Lisboa para o Instituto Camões.
Ribeiro Telles está ciente da inesperada iniciativa do lado brasileiro de pedir emprestado para as solenidades o coração de Dom Pedro I, doado em testamento para o Porto – cidade que ganhou da rainha Maria II o título de Invicta, por ter defendido sua coroa e resistido ao cerco, durante um ano, das tropas miguelistas. Preservado em formol num vaso de cristal, o coração está guardado a sete chaves na igreja da Lapa, onde haverá, em 12 de outubro, dia de aniversário do monarca, um concerto com músicas compostas por ele, dentre elas o Hino da Independência – sim, em “brava gente brasileira, longe vá temor servil”, a melodia é da lavra de Pedro I. Se o coração embalsamado cruzar o Atlântico, terá de ser, portanto, num bate e volta. “A Câmara do Porto está avaliando o pedido com toda a boa vontade, mas é preciso fazer um estudo das condições técnicas desse transporte, porque não é todo dia que se transporta tão longe um coração, não é?”, disse Ribeiro Telles. Ele acrescenta que a questão “ultrapassa” suas funções, cabendo a decisão à administração do Porto e à Irmandade da Lapa.
A fixação pelas relíquias de Dom Pedro repete o roteiro da ditadura militar brasileira, que conseguiu, em 1972, que a ditadura salazarista, em seus estertores, levasse os restos mortais de Dom Pedro para o Museu do Ipiranga – fato celebrado com pompa e honrarias de Estado, que culminou numa grande cerimônia pelos 150 anos da Independência, comandada pelo então presidente, general Médici, episódios documentados pela tevê pública portuguesa.
Fechado desde 2013 e em obras de reforma e ampliação nos últimos três anos, o Museu do Ipiranga foi erguido onde supostamente ouviu-se em 1822 o brado retumbante, cena romantizada no quadro de Pedro Américo Independência ou Morte, que também se encontra, agora restaurado, no Ipiranga. A previsão é de que o museu seja reaberto justamente para as comemorações do Sete de Setembro em São Paulo, sob auspícios de políticos estaduais adversários do Palácio do Planalto. A Secretaria Especial de Cultura, ligada ao Ministério do Turismo, classifica a obra, estimada em 211 milhões de reais e financiada sobretudo via captação de incentivos fiscais, como “entrega do governo federal” para o Bicentenário. O coração de Dom Pedro iria abrilhantar alguma cerimônia em Brasília que o governo pudesse chamar de sua, mas essa agenda ainda é desconhecida. Até o momento, a participação de Jair Bolsonaro, que passou o Sete de Setembro de 2021 em embates públicos contra o Supremo Tribunal Federal (STF), não foi mencionada como anfitrião ou convidado de qualquer programação já confirmada para o Bicentenário.
O destaque dado à figura do imperador que proclamou a Independência constitui ainda a principal mensagem sobre a efeméride nas publicações oficiais do governo brasileiro, que lançou há dois meses, via Secretaria da Cultura, um edital de 30 milhões de reais para produção audiovisual sobre o tema. Autora de conhecida biografia de Dom Pedro I, a historiadora e doutora em Ciência Política Isabel Lustosa analisou a campanha criada pelo governo brasileiro, que escolheu o punho da espada e a cruz de malta como símbolos do Bicentenário.
“É realmente inusitada essa tentativa de construir um herói idealizado, com sua espada flamejante a libertar seu povo. Por certo não se destina a quem tenha algum conhecimento da história do Brasil. Nem nos livros de história do século XIX e começo do XX isso foi tão longe”, avaliou. “Me parece que o investimento aqui é no sentido de criar uma versão idealizada da história, sem compromisso com o que a historiografia produziu até hoje”, acrescentou a pesquisadora, que destacou o tom monarquista do discurso. “Fica mais fácil ficcionalizar, dar um caráter divino à origem dos reis, o que justificaria o seu poder e o de seus herdeiros sobre uma nação, como no Antigo Regime. E vem também a propósito a inclusão de um elemento medieval, do tempo das cruzadas, como a cruz de malta.”
Lustosa defende que seu biografado não seja visto de forma estereotipada, “nem como um personagem de vaudeville, nem como herói sem mácula e invencível”. “Ele foi, em suas circunstâncias, o mais progressista possível e ditou o rumo da história de dois países”, afirma. Quando morreu de tuberculose, em 24 de Setembro de 1834, a dias de completar 36 anos, Dom Pedro havia conseguido a proeza de deixar a filha reinando em Portugal, e o filho, o imperador Dom Pedro II, no Brasil.
Portugal também incluiu em sua programação oficial de 2022 comemorar os 100 anos da primeira travessia aérea do Atlântico Sul, realizada pelo almirante Gago Coutinho e comandante Sacadura Cabral em 1922, no âmbito justamente do Centenário da Independência do Brasil – marcado pelo governo Epitácio Pessoa com a inauguração, em grande estilo, da Exposição Universal do Rio de Janeiro. Erguida na esplanada surgida após a polêmica demolição de mais de setecentas construções coloniais, inclusive convento e igreja, e arrasamento do Morro do Castelo, no Centro do Rio, local da primeira povoação carioca, a grandiosa exposição, algo em voga na época, foi planejada durante anos para mostrar ao mundo o progresso tecnológico da jovem nação brasileira. Foi nesse espírito de modernidade que Portugal, convidado para as festividades, decidiu chegar ao Brasil pelos ares, a bordo do hidroavião Lusitânia. A aventura iniciada em Lisboa em 30 de março de 1922 teve um tempo de voo de 62 horas e 26 minutos, mas durou 79 dias, tendo o hidroavião chegado ao Rio apenas em 17 de junho, quando os pilotos portugueses, celebrados em nome de ruas Brasil afora, foram recebidos por uma multidão.
A demora – 35 dias a mais do que levaram as caravelas de Cabral em 1500 –, deveu-se a vários contratempos, principalmente panes mecânicas, que obrigaram até a troca do equipamento. Na travessia, os pilotos chegaram a passar nove horas como náufragos, até serem resgatados por um navio inglês. Incluída no cronograma do Bicentenário, a viagem de Gago Coutinho e Sacadura Cabral, feita com auxílio apenas da navegação astronômica, está neste momento sendo refeita, com todas as paradas acidentais, por nove veleiros portugueses.
“Confesso que quando recebemos aqui as associações de veleiro não acreditei que tal projeto pudesse ver a luz do dia”, relata Ribeiro Telles. “Foram muitas peripécias (na viagem original), com duas trocas do hidroavião”, observa. “Mas agora está tudo a correr bem. Os veleiros já passaram pelas Canárias e Cabo Verde e estão a chegar a Fernando de Noronha”, relatou o embaixador ao receber a piauí no dia 3 de maio, em seu gabinete no Palácio das Necessidades. O trajeto de 1922 incluiu ainda passagens por Recife, Salvador, Porto Seguro e Vitória, e, por fim, a Baía da Guanabara, na segunda quinzena de junho. Os velejadores, que estão contando com apoio da Marinha brasileira, são patrocinados por entidades privadas. Até um simulador do hidroavião Lusitânia estará à disposição do público no Hipódromo da Gávea, no Rio de Janeiro.
Os feitos dos pilotos portugueses, apesar das desventuras, foram o grande destaque da cobertura que a imprensa portuguesa realizou sobre o Centenário do Brasil, segundo estudo inédito realizado pelos pesquisadores Celiana Azevedo e Jorge Pedro Sousa, ela brasileira, ele português, ambos professores da Universidade Nova de Lisboa. Das 44 peças analisadas pela dupla, 22 da revista Ilustração Portuguesa e 22 da ABC Revista Portuguesa, entre agosto e dezembro de 1922, somente sete tiveram por objeto o Centenário da Independência propriamente dito.
“Todas as outras matérias dizem, na verdade, respeito a Portugal na sua relação com o Brasil: a primeira travessia aérea do Atlântico Sul, a visita do presidente português ao Brasil, a presença portuguesa na Exposição Internacional do Rio de Janeiro, as celebrações do Dia do Brasil em Lisboa”, enumeraram os pesquisadores. “O que mais se observa é o direcionamento do discurso não para o Centenário da Independência, não para o Brasil ou para os brasileiros, mas sim, para Portugal, como se fosse ele o homenageado”, completaram.
A conclusão do estudo, apresentado em 11 de abril no Congresso da Associação Portuguesa de Ciências da Comunicação em Lisboa, é a seguinte: “as representações midiáticas na imprensa portuguesa sobre os cem anos da independência brasileira refletiram uma construção etnocêntrica, europeia, estereotipada, lusocêntrica, redutora, que valoriza as características de semelhança do Brasil em relação a Portugal e desvaloriza, por total omissão, as características de diferenciação do Brasil em relação a Portugal, e, sobretudo, a diversidade do Brasil, os Brasis dentro do Brasil.” Celiana Azevedo revelou que a segunda parte da pesquisa será o exame da cobertura na imprensa lusa do Bicentenário.
Isabel Lustosa julga que hoje “não se pode dizer que haja uma relação de superioridade entre uma nação e outra”, ainda que seja lusa a cultura dominante no Brasil – fato espelhado em toda a programação oficial do Bicentenário. “Língua, religião, comportamento, instituições, tudo foi imposto pelo colonizador e se consolidou ao longo de séculos”, enumera. “Isso fez com que os demais elementos que contribuíram para dar a forma mais geral que tem a sociedade brasileira, tanto os nativos da própria América, quanto os africanos aqui trazidos para serem escravizados, tivessem uma presença lateral nesse formato”, analisa. “O próprio preconceito contra as culturas desses povos que tinham sido submetidos fez com que a educação das crianças brasileiras fosse sempre concebida nos mesmos moldes da que era seguida em Portugal.”
Se em 1922 o símbolo maior da amizade foi a ilustração, publicada tanto no Brasil quanto em Portugal, do beijo angelical de duas mulheres brancas aladas, vestidas com as bandeiras das repúblicas portuguesa e brasileira, em 2022 o simbolismo da união estará na iluminação do Cristo Redentor com as cores verde e vermelho, de Portugal, na noite de 3 junho, quando o Rio de Janeiro começará a festejar os 200 anos numa série de eventos conjuntos.
Fonte: Piauí
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